Porque leio

Um dia desses, alguém me perguntou por que leio tanto. Sou viciada em leitura. Acho que a melhor resposta seria um ensaio que escrevi para uma revista literária alguns anos atrás. Então, aí vai a resposta:
Não me lembro bem se tinha oito ou nove anos quando li meu primeiro livro: “Raul da ferrugem azul”, de Ana Maria Machado. O nome soou bastante estranho – seria um garoto acometido de ferrugem da cor do céu? Instigada pela curiosidade pura e simples, aventurei-me no mundo do menino Raul que, realmente, descobriu estranhas manchas azuis em seu corpo. Ficou desesperado. Procurou ajuda de amiguinhos (Raul era uma criança), pais, vizinhos, enfim, de quem passasse em seu caminho. O problema é que ninguém via nada de diferente em seu corpo, nem um sinalzinho ou pinta sequer. Muito menos azul. Raul enxergava um problema que ninguém conseguia ver, muito menos entender. Ele percebeu que havia problemas que os adultos não compreendem. Nem os amigos. Seu grande dilema era onde encontrar respostas.
Entendi desde o princípio que as manchas azuis no corpo do menino não eram literais. Eram, na verdade, questionamentos, indagações, dúvidas que toda criança tem. O que elas não têm são respostas.
São dúvidas sobre crescer; enfim, dúvidas sobre a vida.
Todos sabemos o que é a vida, mas quando somos questionados a dar uma definição, as palavras simplesmente desaparecem. Talvez tenhamos alguns verbos, mas não conseguimos encontrar substantivos ou adjetivos que qualifiquem exatamente o que é viver.
Nesta época, assim que acabei de ler o livro (já faz, mais ou menos, vinte anos) perguntei a alguém “o que é viver?”. Esperava ouvir uma resposta simples e objetiva. Qual não foi minha decepção quando me responderam que viver é fazer o que tem que ser feito nos “cada segundo” que temos de vida. Com “cara-de-ponto-de-interrogação”, insisti mais um pouco perguntando o que exatamente eu teria que fazer. A segunda resposta veio tão ilícita quanto a primeira: eu teria que fazer o que os outros dissessem para eu fazer... e pronto! Típica resposta de quem não sabe o que dizer. Ou, talvez eu, uma fedelha, estivesse enchendo o “saco”.
Hoje percebo o óbvio. Estávamos em um período de transição: ditadura – democracia. Na ditadura, as pessoas não pensam, não falam. Apenas fazem porque têm que fazer. Então, eu não culpo, perdôo.
Deixei o mundo de Raul e comecei a me concentrar em meu próprio mundo. Descobri que eu mesma estava coberta de ferrugem. Azul, vermelha, verde. Um arco-íris de dúvidas e perguntas sem respostas. Mas, assim como Raul me mostrou que a ferrugem existe, é certa e verdadeira, também abriu minha mente para procurar o alvejante capaz de clarear o obscuro, o sombrio. Raul fez com que eu entrasse em outros mundos. conhecesse outras personagens. Talvez encontrasse respostas para alguns de meus problemas lendo outros livros. Não parei desde então.
Lendo, comecei a compreender melhor a vida, o ser humano, a história e a pré-história. Descobri o Brasil e o mundo. Descobri a diversidade de etnias, religiões, fauna e flora, governos e pensamentos. Descobri que todos somos iguais e diferentes ao mesmo tempo. Somos coletivos, mas singulares na essência. Descobri o capitalismo, o socialismo e o anarquismo. O machismo, o feminismo, o egoísmo e o altruísmo. Romantismos, realismos, modernismos, dadaísmos, tropicalismos e muitos outros “ismos”. Descobri que amor e sexo são independentes. Que existe ótimo cinema além dos limites das medíocres megaproduções “hollywoodianas”. Descobri que existe vida nas fossas abissais, nos gelos árticos e antárticos, bem como nos calores infernais vulcânicos. Que pode haver vida também em outros planetas, espalhados por duzentos bilhões de galáxias. Descobri que o universo tem quinze bilhões de anos e que há espécies de insetos que nascem, se desenvolvem, copulam, reproduzem e morrem em menos de vinte e quatro horas. Descobri a música, a arte e os artistas e os mais variados ritmos. De Mozart e Ravel a Caetano Veloso, Tom Jobim e o psicodélico Roger Waters. Descobri que a tecnologia pode ser usada para o bem e para o mal. Descobri que se eu não estiver satisfeita, posso reclamar e cobrar para que o serviço seja bem feito. Descobri que bons políticos são poucos. A maioria sempre promete. E só. Descobri que intolerância traz conseqüências desastrosas; principalmente a religiosa. Descobri que homens podem gostar de homens. E mulheres, de mulheres. Descobri que se fala mais de cinco mil línguas e dialetos no mundo. Descobri o mundo fantástico dos deuses e semideuses de mitologias e folclores e suas lendas de como tudo foi criado.
Na adolescência, descobri Marcos Rey, Cecília Meireles, Monteiro Lobato, Machado de Assis, Graciliano Ramos. Depois, vieram Richard Bach, Bukowisky, Eça de Queiroz, Camões, Jorge Amado e Zélia Gattai (com seus anarquistas...), Andrade, Alves, Pessoa, Lispector, Teles, Luft, Sagan, Christie, Kafka, Kundera, Ubaldo, Eco, Bronte, Wilde, Darwin, Tolstoi, Hesse, Shakespeare, Flaubert, Hemingway, Trevisan e o mais recente, Alexandre Takara, entre tantos outros que não vêm à minha memória no momento. Mas jamais me esqueço o quanto todos eles me narraram. Tantas descobertas!!! E, em todas essas descobertas, obtive muitas de minhas tão desejadas respostas, mesmo sabendo que tenho muito a descobrir e muitos autores a conhecer ainda.
É por isso que leio.

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